A enxaqueca e seus mistérios
Postada em: 02/10/2007
Fonte: Jornal do Brasil 12/09/2007

A enxaqueca é, segundo a Organização Mundial da Saúde, uma das doenças mais importantes da humanidade. Estima-se que ela possa atingir cerca de um quarto das mulheres e 8% dos homens em todo o mundo. Os mecanismos da doença são complexos e acredita-se ser provável que pessoas com enxaqueca tenham mutações genéticas que facilitam a ocorrência de processos ligados à dor ou a liberação de substâncias que alteram a circulação sangüínea. Também é possível que pequenas alterações da função e da estrutura do cérebro estejam presentes nesses pacientes.

O principal sintoma da enxaqueca é a dor de cabeça, mas outros, como vômitos e intolerância a luminosidade, podem ocorrer. Além disso, alguns pacientes percebem um intenso zigue-zague luminoso em seu campo visual. Esse fenômeno (descrito pela primeira vez em 1778) foi batizado de 'espectro de fortificação' e indica disfunção na parte mais externa do cérebro, o córtex cerebral. Comumente, o espectro se manifesta por um 'brilho' que aos poucos adquire a forma de um 'C', com a borda em zigue-zague. Porém, os pacientes podem também ter sensações visuais complexas, como perceber objetos com tamanhos exageradamente pequenos ou grandes. Essas disfunções na atividade do córtex cerebral são chamadas de aura visual.

O fenômeno que parece estar por trás da aura visual se chama depressão alastrante. Esse fenômeno caracteriza-se por diminuições (depressões) sucessivas da atividade do córtex em diferentes partes dessa área cerebral. Por exemplo, certos pacientes têm dificuldade de reconhecer rostos humanos, o que provavelmente está relacionado à diminuição da atividade cortical (ou seja, à passagem da depressão alastrante) em áreas ligadas ao reconhecimento de faces. Outras pessoas relatam diferenças na percepção das cores, como palidez ou brilho exagerado, e há uma região específica do córtex ligada a isso, por onde, no momento da ocorrência do sintoma, deve estar passando a depressão alastrante. Alguns pacientes têm vários sintomas combinados, mas, quando isso acontece, eles não surgem ao mesmo tempo, mas se sucedem em cadeia, de acordo com a distribuição das funções no cérebro.

Os brilhos vistos pelos pacientes com aura visual formam ângulos de 60º em média. Como certas áreas do córtex têm neurônios especializados na detecção da inclinação e orientação de linhas, realizou-se um experimento no qual barras luminosas inclinadas foram mostradas a pessoas com enxaqueca e a outras sem a doença. Com isso verificou-se que o processamento visual no cérebro de enxaquecosos, mesmo fora das crises, é diferente do de indivíduos saudáveis, e que seu cérebro pode funcionar de forma diferente, independentemente da presença da dor ou da aura.

Além disso, durante uma crise de enxaqueca várias substâncias são liberadas nos vasos sangüíneos, entre elas a proteína CGRP, o mais potente vasodilatador conhecido. Assim, realizou-se um estudo no qual se colheu sangue da veia jugular (no pescoço) de pacientes, durante as crises, no lado que doía e no lado sem dor. Os resultados mostraram que o nível de CGRP era maior apenas no lado em que havia dor, evidenciando a atuação da proteína na doença. Em outro estudo, após provocar a depressão alastrante em animais de laboratório, verificou-se que ela poderia ser a responsável pela liberação de CGRP, pela ativação da dor e pelas alterações circulatórias observadas.

Porém, é possível também que a própria estrutura do cérebro seja diferente na enxaqueca. Usando técnicas de imagem por ressonância magnética, mostrou-se, por exemplo, que algumas regiões do córtex cerebral podem ser mais espessas naqueles que têm enxaqueca e também que isso pode ocorrer em algumas vias relacionadas à transmissão de informações dolorosas dentro do cérebro. É possível ainda que a enxaqueca tenha influência genética. Em 1996 foi descoberto o primeiro gene relacionado a uma forma da doença, a 'enxaqueca hemiplégica familiar'. Camundongos com mutações induzidas nesse gene apresentam sintomas desse tipo de enxaqueca e a depressão alastrante ocorre, em seu cérebro, mais facilmente e com velocidade maior. No entanto, as formas mais rotineiras da doença ainda não tiveram seus mistérios genéticos totalmente desvendados.

Portanto, a enxaqueca não é uma dor de cabeça qualquer. Alterações discretas da função e da estrutura do cérebro, além de mutações genéticas, podem estar presentes nos pacientes. Embora o tratamento atual da doença possa ser considerado eficiente, espera-se que, no futuro, terapias mais específicas possam bloquear a expressão desses genes e normalizar as alterações cerebrais, melhorando a vida de milhões de pessoas que sofrem com enxaqueca no mundo inteiro.



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