Além do limite
Postada em: 20/09/2007
Fonte: Folha de São Paulo - SP

Doenças cardiovasculares genéticas e adquiridas podem desencadear morte súbita durante exercício físico intenso; especialistas dão dicas de prevenção.

JULLIANE SILVEIRA

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Primeiro, foi o inglês Anton Reid, de apenas 16 anos. Depois, o espanhol Antonio Puerta, 22. No dia seguinte, foi a vez do zambiano Chaswe Nsofwa, 27. A morte súbita, num espaço de menos de dez dias, dos três jogadores profissionais de futebol trouxe à tona um paradoxo que assusta quem pratica exercícios: o fato de que o esporte, geralmente relacionado a vigor físico e saúde, pode também ter conseqüências fatais.

"Não é porque a pessoa é atleta de elite que é isenta de problemas. Há uma grande sobrecarga no organismo de um jogador profissional", afirma Renato Romani, professor do Centro de Medicina da Atividade Física e do Esporte da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Evidências científicas reforçam que o risco de morte súbita cardíaca é três vezes maior em quem se exercita do que em sedentários.

O ortopedista e médico do esporte André Pedrinelli, da Confederação Brasileira de Futebol de Salão, explica que cada organismo tem uma reserva metabólica específica, que é a capacidade de agüentar esforços extremos e de ganhar mais condicionamento físico.

Um atleta profissional, que está sempre no limite do que seu corpo suporta, sofre uma sobrecarga maior. Mesmo com um melhor condicionamento, ele fica exposto por mais tempo ao esforço, e isso aumenta as chances de um problema fatal. Pedrinelli diz ainda que o esporte profissional tem se tornado mais físico do que técnico. "O atleta precisa ter mais condicionamento físico para se manter competitivo".

Se, além do treino intenso, a pessoa ingere pouco líquido, alimenta-se mal ou sofre a pressão de um campeonato, por exemplo, criam-se condições inadequadas para a contração correta dos músculos, incluindo o coração. O zambiano Chaswe Nsofwa, que morreu em um treino, jogava sob uma temperatura de 40ºC, que favorece a queda da pressão arterial. Esse conjunto de fatores também pode desencadear uma parada cardíaca em quem já tem predisposição.

Problemas cardíacos

As doenças do coração são responsáveis por 90% das mortes repentinas relacionadas ao esporte, diz Nabil Ghorayeb, cardiologista do HCor (Hospital do Coração) de São Paulo e especialista em cardiologia do esporte. Muitas vezes, são silenciosas: não apresentam sintomas. Os médicos ouvidos pela Folha, porém, são unânimes em dizer que o esporte não provoca doenças fatais. "O que mata são patologias do atleta que não foram diagnosticadas ou valorizadas", diz Ghorayeb.

Para quem tem menos de 35 anos, a origem da morte súbita é genética. São as chamadas cardiopatias congênitas, que culminam em uma parada cardíaca em razão de um esforço extremo. Podem se manifestar em problemas no músculo cardíaco, nas artérias que irrigam o coração (coronárias) e no sistema elétrico do órgão, que dita o ritmo dos batimentos.

Quando a morte ocorre em pessoas com mais de 35 anos, as causas costumam derivar de doenças coronarianas adquiridas por maus hábitos, como hipertensão arterial, diabetes ou colesterol alto. Essas condições podem desencadear uma arterosclerose (depósito de gordura nas grandes artérias). Ao se exercitar intensamente, o esportista estimula o aumento da pressão arterial, as placas de gordura podem se desprender na corrente sangüínea e gerar um dano nos vasos. A necessidade de o organismo "cicatrizá-lo" com coágulos pode bloquear o fluxo do sangue.

Outro agravante é o consumo de drogas para aumentar o rendimento. Segundo um estudo divulgado no congresso da Sociedade Européia de Cardiologia de 2006, mais de 95% das substâncias para aumento do desempenho têm efeitos colaterais. Anabolizantes, hormônios de crescimento, diuréticos e remédios para mascarar o doping podem causar arritmias (alterações nos batimentos cardíacos) e morte súbita.

"O hormônio do crescimento incha os músculos, inclusive o cardíaco, e um coração alterado é mais propenso a arritmias. A cafeína contida nas bebidas energéticas também é perigosa, pois altera os batimentos cardíacos e pode causar problemas em quem já tem uma doença no coração", afirma Mário Martinelli, presidente do departamento de arritmias cardíacas da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia).

O aspecto emocional também pode ser um fator de risco, afirma Katia Rubio, especialista em psicologia do esporte e professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP (Universidade de São Paulo). "Quando a pessoa não ouve ou nega os sinais do corpo, ela permanece no esforço demasiado. Por imaturidade ou falta de informação, não identifica aquilo como um limite". Além disso, diz, muitos descuidam dos exames por acreditarem que o exercício é algo "natural" e que os problemas "só ocorrem com os outros". "Exercícios devem dar prazer, promover a saúde. É preciso fazer esporte, o corpo sente falta dele, mas deve haver equilíbrio para não se prejudicar", diz Romani, da Unifesp.

Prevenção

Não é só o atleta profissional que corre riscos. Qualquer pessoa que se exercita intensamente -mais de quatro vezes por semana por um período superior a uma hora- ou quer aumentar a carga de exercícios deve se cuidar. Se o exercício é de baixa intensidade, como uma caminhada diária leve, os riscos diminuem muito. "O problema é que as pessoas começam a caminhar, passam para a corrida e já querem correr a maratona -sem acompanhamento médico", diz Pedrinelli.

Ficar sedentário a semana inteira e jogar futebol com os amigos no sábado, ainda mais sem conhecer as próprias condições cardiovasculares, é outro perigo, que pode levar a arritmias, desmaios e até mesmo uma parada cardíaca fatal. Entre os esportes, aqueles com alternância de ritmo -que revezam momentos de pique com paradas bruscas-, como futebol, tênis e basquete, oferecem mais risco ao coração, que precisa mudar o ritmo para bombear o sangue de maneira correta. Por isso, não devem ser indicados como primeira alternativa de atividade física para quem é pouco ativo.

Uma recomendação para quem pratica essas atividades é proceder de forma parecida com a dos jogadores profissionais: adquirir condicionamento aeróbico fora da quadra. Atividades contínuas, repetitivas e prolongadas, como a corrida de média distância, a natação e a caminhada, oferecem menos risco ao coração. Segundo Mário Martinelli, da SBC, quem está fora de forma ou faz parte de um grupo de risco (tem colesterol alto, diabetes, hipertensão, estresse etc.) não deve usar o exercício para resolver esses problemas. É preciso buscar ajuda médica, fazer uma dieta específica para o problema, diminuir os sintomas e, só então, buscar um treinamento orientado. "Não se emagrece nem se desestressa em cima de uma esteira. É preciso mudar o estilo de vida."

E, para minimizar os riscos, não basta se contentar com a avaliação física da academia. É imprescindível uma consulta com um cardiologista antes de começar a treinar. Além da avaliação clínica, é recomendado passar por um eletrocardiograma -exame indicado por todos os médicos consultados, com o argumento de que pode salvar vidas. "É simples, barato e de fácil interpretação. Com o eletro, posso liberar 95% dos meus pacientes", conta Martinelli. Pessoas mais velhas ou nas quais for prenunciado algum problema podem passar por exames mais detalhados.

Os testes mais específicos são indicados para atletas profissionais ou de alto nível. Com os resultados, pode-se melhorar o treino. O ideal é, caso nada seja diagnosticado, repetir a consulta anualmente.

Quem já se exercita há muito tempo, mas nunca buscou auxílio médico específico, precisa avisar o especialista sobre seus hábitos. Isso devido à "síndrome do coração de atleta": em alguns casos, diz Martinelli, há um espessamento da parede esquerda do coração devido à grande exigência do exercício. Esse remodelamento não oferece problemas, mas pode ser confundido no exame com um infarto, por exemplo.

Outras doenças

Segundo o Instituto do Coração de Minneapolis (EUA), outras doenças, além das cardíacas, podem ser fatais durante a prática esportiva. Asma induzida pelo exercício, disfunção respiratória, hipertermia maligna, sangramento gastrointestinal e traumas de impacto são as principais causas. Rafael Stelmach, presidente da SPPT (Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia), afirma que, se a asma estiver controlada, o paciente pode praticar o que quiser -por "controlada", entenda-se a ausência total de sintomas e de crises nos últimos seis meses.

Quem descuida da medicação ou sente ocasionalmente um chiado no peito está com a doença "parcialmente controlada", segundo o médico, e pode ter problemas durante um exercício mais intenso. Geralmente os sintomas surgem após 15 minutos de esforço e, dependendo da intensidade, podem levar à morte.

"Atletas de alto nível podem ter uma grande resistência e, por isso, não dar bola para um sintoma menor e postergar o tratamento. Isso é errado -o medicamento deve ser usado logo. No caso de competições, basta avisar que usou o remédio, para que ele não seja confundido com doping", diz. Colaborou Amarílis Lage

PREVINA-SE

Conheça os exames mais indicados para avaliar a capacidade cardiopulmonar, disponíveis em centros de medicina diagnóstica e do esporte.

Eletrocardiograma de repouso (ECG)

O que é: estudo gráfico das correntes elétricas originadas do coração

Para: pessoas de todas as idades que pretendem se exercitar com segurança

O que faz: mostra as condições do coração e pode apontar alguma alteração cardíaca

Teste ergométrico

O que é: avaliação cardiológica durante um teste de esforço físico

Para: adolescentes e adultos com prática esportiva intensa ou maiores de 35 anos

O que faz: pode tirar dúvidas sobre a capacidade cardíaca, apontadas no ECG

Ecocardiograma

O que é: uma espécie de ultra-som do coração

Para: pacientes com alterações indicadas em outros exames

O que faz: detecta problemas na estrutura do coração, como as cardiomiopatias

Eletrocardiografia dinâmica ("Holter")

O que é: gravação e análise dos batimentos cardíacos por 24 horas consecutivas

Para: aqueles que tiveram uma alteração do coração diagnosticada em outro exame

O que faz: pode detectar alguma arritmia cardíaca

Ergoespirometria (exame cardiopulmonar)

O que é: mede o oxigênio consumido e o gás carbônico liberado durante a prática esportiva, para analisar e sugerir o limite do atleta

Para: atletas profissionais ou de alto nível

O que faz: permite indicar o treinamento adequado

Espirometria

O que é: verifica o volume de gases presentes no pulmão

Para: atletas profissionais ou de alto nível

O que faz: avalia a função dos pulmões

Fonte: Romeu Meneghelo, presidente do departamento de ergometria da Sociedade Brasileira de Cardiologia



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